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O Tambor | Crítica

Entre tambores, gritos e silêncios: a visão inocente (e brutal) de um mundo em ruínas.

O Tambor não é um filme fácil, e nem quer ser. Mas é justamente nessa estranheza que ele se revela tão necessário. Acompanhamos Oskar Matzerath, interpretado com intensidade hipnótica por David Bennent, um garoto que decide, aos três anos, que não vai mais crescer. A partir daí, o que se vê é o mundo girando enquanto ele permanece pequeno, tocando seu tambor como quem bate à porta da consciência coletiva.

É curioso como tudo gira em torno de Oskar, mas não de forma egocêntrica: ele é o olhar por onde enxergamos uma sociedade adoecida, mergulhada num cotidiano em que o nazismo surge não como ruptura, mas como continuidade disfarçada de normalidade. E é aí que o filme se torna interessante e impactante. O que deveria ser absurdo, torna-se rotina. As pessoas vão aderindo, aceitando, absorvendo  e ele, mesmo imóvel no corpo, observa tudo com um “senso de lucidez” que poucos adultos ao seu redor têm.

Os cortes de cena e as transições narrativas são outro trunfo do diretor Volker Schlöndorff. A história se move por saltos, às vezes quase teatrais, mas nunca perdemos o fio. O tambor, onipresente, vira instrumento de resistência, expressão e raiva. E mesmo quando o roteiro escorrega para o grotesco, o que acontece algumas vezes, há sempre uma carga simbólica que justifica a estranheza.

Exemplo? A cena em que Oskar grita e quebra vidros com sua voz aguda. Parece fantástico e surreal. Mas, ao mesmo tempo, revela o poder destrutivo da palavra, da voz que não se cala. Ele não cresce, mas sua presença é uma ruptura no mundo dos adultos, um lembrete incômodo de que existe algo de profundamente errado ali.

Outro momento que carrega esse simbolismo é o relacionamento de Oskar com Maria, envolto em erotismo precoce e incômodo. A intenção não é chocar gratuitamente, e sim desmascarar a hipocrisia do entorno. Um mundo que já perdeu o senso do certo e errado, e que permite o absurdo se infiltrar até nas relações mais íntimas. Não é à toa que o corpo de Oskar permanece infantil: sua aparência é a ironia máxima diante da maturidade doentia do mundo adulto.

A mãe, interpretada por Angela Winkler, também tem uma trajetória que reflete esse processo: o afeto inicial, o desespero silencioso, a entrega à melancolia. Cada personagem à sua volta muda, conforme o mundo se deforma. Mas Oskar sempre com o seu tambor, seu olhar fixo, e essa dualidade entre criança e espectro que carrega o fardo de ver mais do que devia.

O Tambor é incômodo, sem dúvida. Mas é também daqueles filmes que não saem da cabeça. Que desafiam a forma como vemos o passado e o presente. E que, mesmo décadas depois, ainda conseguem nos desestabilizar. Porque no fundo, talvez a gente continue sendo como Oskar: tentando gritar contra o absurdo, enquanto o mundo insiste em normalizá-lo.

Nota: 4/5

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