Cinema, Crítica de Filme

Filhos do Mangue | Crítica

Mistério, memória e um mangue de tensões não resolvidas

Crédito: Pé na Estrada Filmes

Filhos do Mangue não entrega respostas fáceis. E isso é bom — ao menos no começo. O longa nos convida a entrar num universo úmido, abafado e fraturado, não só pelo ambiente físico, mas também pelas pessoas que o habitam. O protagonista, vivido por Felipe Camargo, surge sem memória e sem identidade, e o filme embarca com ele nesse vazio. Somos colocados no escuro, junto com ele, e a tensão vem justamente da ausência de certezas. Quem ele é? Por que está ali? Quem são aquelas pessoas ao redor?

A direção de Eliane Caffé aposta num estilo quase claustrofóbico, com câmera próxima, colada aos corpos e às expressões. Isso cria um tipo de intimidade desconfortável: ao mesmo tempo em que estamos dentro daquele mundo, não conseguimos decifrá-lo. O roteiro é econômico nos diálogos, e vai revelando aos poucos as figuras que vivem à margem literalmente e socialmente. O mangue aqui não é só cenário: é metáfora de tudo que é turvo, preso, enraizado, mas ainda vivo.

Há um cuidado em construir cada personagem como parte de um ecossistema social mais amplo. O longa fala sobre sobrevivência econômica, emocional, física e também sobre a violência cotidiana que molda aquelas vidas. O destaque vai para como o filme desenvolve o tema da exploração e violência contra a mulher, com cenas que incomodam, mas nunca soam gratuitas. É um retrato direto de uma realidade muitas vezes invisibilizada.

Felipe Camargo entrega uma atuação densa e cheia de nuances. Seu personagem não é herói, e o filme não tenta redimi-lo. Há momentos em que ele age com brutalidade e frieza, quando o roteiro explora seu passado, outros em que parece genuinamente perdido, tentando preencher os buracos da própria mente. A perda de memória não serve aqui como um artifício de mistério barato, mas como oportunidade de uma possível remodelação de caráter ou personalidade. 

Crédito: Pé na Estrada Filmes

Os personagens ao redor dele formam um pequeno universo instável e tenso. Roney Villela faz um tipo mais agressivo, que parece desconfiar de tudo e de todos, enquanto Titina Medeiros constrói uma mulher, endurecida pelo lugar, os problemas com o ex-marido, e as relações dele com a sua filha. As relações entre esses personagens são atravessadas por desconfiança, ressentimento e silêncios pesados. Ninguém ali está de fato disposto a se abrir ou ajudar, o que contribui para a tensão constante que paira sobre a trama. 

O problema é que esse bom começo, cheio de atmosfera e tensão, acaba se perdendo em um ritmo excessivamente lento. O segundo ato tenta expandir a jornada do protagonista, mas não avança de fato. A promessa de um recomeço não se cumpre: ele permanece girando em torno de si mesmo, sem uma evolução marcante. O espectador fica à deriva, e a sensação de mistério vira apatia.

Nos momentos finais, o filme parece se apressar para encerrar o que não desenvolveu antes. Algumas resoluções chegam abruptas, e outras são deixadas em aberto. Há intenção, há temas fortes, há performances sólidas mas falta amarra. Fica aquela sensação agridoce de um filme que tinha tudo pra ser arrebatador, mas se contenta em ser apenas inquietante.Mesmo com seus tropeços, Filhos do Mangue acerta em construir um ambiente é um retrato humano que permanece com o espectador. É cinema que aposta na imersão e no desconforto.

Nota: 4/5

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